quinta-feira, agosto 19, 2004

O silêncio de morte

O silêncio da morte tinha chegado. As pedras do muro choravam verde na mão que agora as alisava, não eram frias, nem duras, sentia-as mais como uma segurança.
A principio, julgara apoiar-se em grande e pesado corpo feminino coberto de veludo, os seus ouvidos ensurdeceram com o grito do silêncio, os olhos, esses, sempre tinham tido mais um pendor residual, ocupavam o espaço descuravam a função, tinham mudado para as extremidades...não olhava, não vi, senti-a, nunca sentira essa pena alheia por uma qualidade extra, por ver o que os outros olhavam, com os dedos.
Mas naquele dia, agora, que foi passado, tombou, deixou cair, foi obrigado a cair.
O barulho do bar girava e pulava por entre os que estavam, os corpos, deliciosas formas de vida...levava o copo à boca, da boca descia quente a queimar, e subia rápido ao pensar, o torpor físico não sobrepunha a euforia mental, e lá longe ouvia: "Tás bem, Zé?" ; se estava bem? estava no céu e eles nem sabiam, ali ao lado, à distância de um braço, voava, via as cores que nunca iriam sentir, os cheiros que nunca iriam comer, os sons que nunca os iriam aquecer... sentia.
Saíra, ainda lhe tinham apoiado o passo pelo cotovelo, pouco tempo, por pouco tempo sentira a quase partilha, conteve na boca o que a mente lhe gritava, queria gritar para que todos o ouvissem "Vocês não vêem?", abocanhara a frase no momento dos dentes e seguiu...
O som metálico marcava o andar, descompassado, fora de tempo, no ritmo que o corpo pedia pianíssimo pisar de calçada.
O grito dos pneus, fizera-o saltar, saltar não!, sair do céu em que estava e descer à terra, literalmente tinha descido à terra. -ainda balbuciou algo por entre o fio vermelho-quente que teimava em sair da boca, tinha ouvido, mão na parede, corpo no chão, um "que lindo! ...abrace-me, quero tanto!..."
O silêncio da morte tinha levado.

terça-feira, agosto 17, 2004

As sombras encostadas na parede esmoreciam, desciam até ao negro... a brisa que se levantou, restolhou pela viela como faca em corpo quente. Uma tímida e negra face espreitava, esperava pelo corpo, débil.
No outro lado da cidade a festa tinha começado, os corpos roçavam danças, a luz enchia o espaço... sentiu o abraço, o cheiro da sua pele libertou a vontade, sem mais, reagiu, debaixo do vestido, como que a rasgar o mesmo, despontavam, não podia mais esconder a vontade que lhe queimava o ventre, abocanhou o ser que lhe aprisionava o corpo, racionalmente não o faria, estava descontrolada, queria possuir, era mais forte, era tão forte, algo animal... e deixou-se ir. Os minutos dobravam em gotas de suor e dor, sentia o corpo até ao mais intimo recanto, nunca sentira nada igual, como era possível? Sentir-se tanto na dor, sem amor...
O frio atravessara o cristal que teimava em chorar vapor, o seu corpo sentira o arrepio, pensava agora que nunca o negro tinha tido tanto corpo, quase sentia o escuro de fora...
o tempo teimava no pesado passar, olhava-o no pulso, gesto maquinal, o habito tinha-o feito prisioneiro do seu corpo e o seu corpo definhava no banco onde ela o deixara, amara-o, ele sabia-o, mas a sua condição não permitia acender mais o fogo, tinha tudo acabado naquele final de tarde, era domingo, o levante estava perfeito, como perfeito tinha sido o dia passado no embalar oceânico, na proa do veleiro a silhueta do seu corpo em contraluz dizia-lhe quanta sorte os ventos lhe tinha trazido, era um homem de sorte, sempre se sentira assim...De repente, retranca traiçoeira, uma dor no dobrar indobravel, o branco do silêncio...
tinha sido ai que tudo tinha acabado, ou melhor, tinha sido ai que tinha começado; ele, ela, um novo nós, com novos outros.

segunda-feira, agosto 16, 2004

Desculpa

Deixava cair dos bolsos minutos perdidos, no caminhar alterado, passeava o corpo pelo tempo, carregava comigo aquele tempo em que o sorriso saia sem esforço...Hoje no dobrar, torcia o tronco com o esgar de lábios, arrancado da vida por breves momento, sorria! A criança que trazia na mão chorava a perda, chorava o tempo que lhe caia como a areia lhe caia no castelo agora banhado pela agua, no ritmo aquoso, languido, a vida puxava-a, carregava-a, agora mais triste tinha o castelo ficado atrás, um monte reflectido do cobre-luz, num lusco-fusco da vida, outro dia apareceria, outro dia acordaria e a mesma cara, o mesmo corpo, a mesma vontade...queria mudar o mundo com o sorriso, mas o mundo tinha mudado o sorriso. Tardava, desanimava, a criança tornara-se Homem, e de mão dada, continuava... deixava cair sorrisos das mãos, dos meus bolsos o tempo, do coração choro-vermelho, raiva na pele curtida, cabelos chama, olhos-faca, andava... tic-tac! Rebentaria a qualquer momento, mártir de mim mesmo, esperava a desculpa, crescia em mim e espalhava, rastejava para fora o ódio que sentia dentro, esperava uma desculpa, rebentava...tic-tac! esperava o meu tempo com o esgar nos lábios.