sexta-feira, janeiro 23, 2004

Descalça

Corria já longo o dia, e ela não deixa por isso de correr, acompanhava a alegria com pontapés de espaço, com contratempos de ritmos, descia a calçada descalça, sangrava, deixava rasto... de alegria na pobreza que tinha vestida, faltava corpo no espaço deixado pelo ar entre derme e tecido, sobrava calor nos movimentos... mesmo assim corria e descia a calçada descalça, gritinhos agudos espetavam a alegria nos ouvidos de quem cruzava. Admirava, estonteava, derrubava... ricos, sóbrios, tristes... corria na esperança de encontrar, de apanhar, de ainda o apanhar... tinha-o ouvido no chão frio quando a primeira vez acordou os sentidos, deambulava, cabrita no sonho quente, fofo e doce... de um salto, saltaram serpentinas de jornais-lençol, sacos-almofada e correu rua abaixo... o som aproximava-se sem nunca se afastar. chegava-lhe cada vez mais dentro, cada vez mais quente, cada vez mais...
"O som assemelha-se ao som da alma", pensava ela, tinha-o ouvido dizer a um doutor que com ela se cruzara no outro dia ali ao pé do café do senhor simpático, na sua meninez acreditava...
e som continuava...
e ela corria, descalça calçada abaixo...
Dobrou a esquina, estanque no sonho, não ia deixar fugir aquele momento, por nada deste mundo...
eram os saltimbancos, lindos, de fogo e risos... parou. Os olhos absorviam a luz do fogo, e estava tão quente...tão quente! que no momento soltou um grito, doia-lhe tanto os pés da alma que ria, eram tão lindos!

A todas as crianças que vivem dentro de nós...