quinta-feira, outubro 30, 2003

Vida de cão!

Deixavam já por onde passava um riso nas caras de quem comigo se cruzava, não me importava, estava feliz... Andava, deambulava por entre os carros, aleatóriamente estacionados naquilo que alguém um dia chamou de passeio, asseio, era o que não via. Por entre um passo e outro descuidadamente pousava os pés, pareceria a quem me via que dançava e não andava, num e noutro carro deixava a minha marca, corroia-lhe o ser, já nada era como dantes, onde deveriam, onde estariam, onde estava aquele sobreiro que durante anos me dizia bons dias, e a acácia, que frondosa resmungava à minha passagem num resfolegar de folhas... onde estavam elas agora?; no seu lugar nasceram prédios, cresceram carros, as suas sombras cheiravam a nada.
Já nada era como dantes, olhei para cima e percebi que me compreendiam também. Arrastando os pés, todos os dias o Tristão, acompanhava-o, como podia, naquela volta rotineira, sim porque somos também de hábitos, não é nada exclusivo de uma raça, cansava-se já com mais pressa que as suas certezas, os passos saim-lhe já descompasados, mas não desistia. Todos os dias me acompanhava e sorria para quem de nós se risse... Fazia-o sem qualquer espécie de rancor, tiha chegado já a uma idade em que se permitia fazê-lo, eu por sua vez, nunca, mas nunca perceberia, de que tanto se riam eles? Voçes por acaso sabem?
Não me digam que é do meu agasalho, pois seria por demais estúpido, só um parvo poderia pensar que nós, os canideos, não sentimos frio. Sentimos e calor também. Aliás digo-vos que este kispo canino é do melhor, assenta-me que nem uma luva, até um capuz tem, sim que a chuva que vos molha também me molha, e não julgem que o Tristão não se incomoda, incomoda pois!, lá em casa nada e tudo tem o seu cheiro, mas uma coisa que com a idade não lhe passou foi supurtar o meu cheiro quando apanho aquela chuva indesejada, Aí de mim, nessa altura espeta comigo na banheira, e esfrega, esfrega, até se me arrepiam os pelos da cauda só de o imaginar...GRRR!... Tirando esse senão, Tristão cuida de mim como dos seus filhos, que aliás estão muito bem na vida, o João é professor de alguma coisa engenhocas em Londres, diz que é bonito, mas nunca lá me levou, afinal sou o cão de sua mãe!, por outro lado a Camila seguiu as pizadas de seu pai, o Tristão se bem se lembram, é pintora e parece-me que de renome. Como referi eu sou o Roliço, cão de água Portugues, de familia bem se pode dizer, e era o orgulho da Lurdes, a carinhosa esposa do Tristão e dedicada mãe de João e Camila, mas de nada lhe serviu essa delicadeza, morreu faz cinco anos para a semana, sinto-lhe a falta, sei que ao Tristão também, quando faço asneira, diz-me logo: " Cão velho! Mafarrico! Se aqui estivesse a Lurdes apanhavas com o jornal, a tua sorte é não mereceres estas letras!"
Vidas de Cão... até é uma boa vida!
Não se riam é de mim se me virem passar!